domingo, 9 de dezembro de 2018

Imagens diferentes do Castelo (e uma prenda de natal)

   O Mapa de Braunio é uma das imagens mais conhecidas de Braga.

Mapa de Braunio
   Este mapa, ou talvez melhor, esta vista panorâmica é atribuída ao gravador alemão Georg Braun, datada aproximadamente de 1594 e faz parte do seu trabalho "Civitates orbis terrarum". É até à data a vista ou mapa mais antigo conhecido da cidade de Braga. Não vou aprofundar muito sobre o seu impacto para o estudo da cidade, pois já existe inúmera documentação escrita sobre o tema, apenas o refiro porque apresenta uma imagem muito vívida do que poderia ser a forma do castelo de Braga por volta de finais do século XVI, princípios do século XVII.

Ampliação do castelo de Braga no Mapa de Braunio
   Esta imagem mostra já um castelo numa fase avançada e com elementos introduzidos posteriormente, como os torreões avançados mais conhecidos como Caramanchões. Se olharmos com atenção à legenda, até podemos ler "Urbis Praesidium", ou seja, já estava instalado no castelo o presídio ou cadeia municipal. Naturalmente que isto não implica uma perda total da função defensiva do castelo, mas diminui bastante essa mesma função e coloca-a em risco, pois passa a ter no interior da cidadela, um dos últimos reductos defensivos da cidade, uma população que pode facilmente virar-se contra os seus carcereiros e entregar o castelo ao inimigo como forma de obter indulto. A esta questão podemos colocar outras, como a obrigação de alimentar esta população em caso de assédio inimigo, a necessidade permanente de um contingente mínimo para manter a ordem ao mesmo tempo que existe a necessidade de organizar a defesa contra o inimigo exterior, e o facto de ter sido acrescentada uma construção anexa ao pano de muralha noroeste que enfraquece o mesmo e dificulta a sua defesa. Aliás, uma das primeiras ordens dadas pelos defensores em caso de assédio era a destruição imediata de todas e quaisquer construções pegadas ou perto dos muros das muralhas do castelo, tanto no seu interior como no exterior, de maneira a criar um espaço vazio que pudesse ser facilmente defendido e não permitisse ao inimigo ocupar posições protegidas perto do castelo.

   No entanto, vemos que as muralhas medievais continuam practicamente intactas e cercam a cidade na sua totalidade.

   Este mapa, ou vista, como eu prefiro chamá-lo, está practicamente 300 anos avançado no tempo, ou seja, passaram três séculos da sua construção inicial, pelo que em teoria já muitas alterações foram introduzidas. E como se trata de uma "Vista" e não de um mapa, não representa com fidelidade aquilo que existe. Não quer dizer no entanto, que não possamos olhar para o mesmo e procurar pistas sobre o nosso castelo. E nesta imagem à uma particularidade que me chama a atenção; o telhado, ou a cobertura da torre de menagem.

   Se compararmos a cobertura que aparece desenhada e a cobertura que existe actualmente na torre notaremos imediatamente uma grande diferença; o desenho e a altura da mesma cobertura.

Cobertura actual; fotografia do autor.

Vista lateral interior e exterior torre de menagem, SIPA

Ampliação do desenho do Mapa de Braunio; in capa da publicação da ASPA, "Torre de Menagem, castelo de Braga, 1530-1450", data desconhecida do autor.
   A diferença é óbvia. A cobertura actual é muito mais baixa e portanto, com uma inclinação muito menor. Quando observamos a torre de menagem não é possível ver a cobertura. Será uma distorção (outra) introduzida pelo autor da imagem? Vejamos dois exemplos próximos no espaço; o castelo de Lanhoso e o castelo de Guimarães:

Cobertura da torre de menagem do castelo de Lanhoso, por Fábio Silva

Vista aérea do castelo de Guimarães onde se pode observar a cobertura da torre de menagem, por A Terceira Dimensão - http://portugalfotografiaaerea.blogspot.com
   Outros muitos exemplos podemos encontrar.

   Então, qual seria a realidade? Como seria a cobertura original? A resposta está como sempre, preservada no tempo, em velhos documentos que hoje em dia podem ser encontrados com relativa facilidade graças à Internet e a estudos arqueológicos e arquitectónicos que nos podem responder com facilidade. Podemos inclusive encontrar algumas torres de menagem que preservaram a antiga cobertura, apesar de ter passado também por processos de reabilitação ou reconstrução ao longo dos séculos. Um dos exemplos mais emblemáticos está perto de nós, o castelo da Feira.

Castelo da Feira, imagem de Carlos Luís M. C. da Cruz, 2009
Castelo da Feira, imagem de Carlos Luís M. C. da Cruz, 2014
Castelo da Feira, imagem de Carlos Luís M. C. da Cruz, 2009
   Embora no castelo da Feira não possamos falar de uma torre de menagem típica ibérica, a mesma está rematada com quatro corucheus com as coberturas cónicas que se mantiveram num formato muito próximo do original; Coberturas altas, com bastante inclinação que practicamente abrangem todo o topo dos corucheus. Infelizmente o castelo sofreu inúmeras adaptações, melhorias e outro tipo de obras ao longo dos séculos, que o foram transformando num castelo senhorial, mais que num castelo típico estratégico da conquista cristã, mas por alguma razão que desconheço mantiveram a peculiaridade das coberturas primárias nos corucheus. Estes, em tempos terão sido em madeira e telha.

   Mas o melhor testemunho pode ser encontrado num livro, conhecido hoje em dia por "Livro das Fortalezas", desenhado por Dom Duarte de Armas.

Livro das Fortalezas de Duarte de Armas. Reedição do Arquivo Nacional da Torre do Tombo
   O Livro das Fortalezas foi encomendado a Duarte de Armas pelo Rei Dom Manuel I, tendo sido executado entre os anos de 1509 e 1510. O objectivo de Dom Manuel era o de vistoriar e conhecer o estado real das principais fortificações que protegiam o reino. Com base nestas observações, o monarca pode efectuar obras importantes nas mesmas ao mesmo tempo que empreendia grandes reformas de corrente centralizadora.

   Infelizmente para nós, o castelo de Braga não foi contemplado nestas reformas, talvez por Braga ser um Couto Eclesiástico e Dom Manuel pensar que as obras no castelo de Braga deveriam correr por conta do clero. De notar que, pelo percurso seguido por Duarte de Armas, muito provavelmente terá passado por Braga, uma vez que desenhou o castelo de Barcelos já no caminho de regresso.

   No entanto temos uma visão bastante clara do que Duarte de Armas viu, pois os seus desenhos são bastante realistas, contam na maioria dos casos com duas vistas distintas de cada fortificação e existem bastantes anotações escritas, como medidas, etc.

   E embora nem todos os castelos apresentem coberturas altas, podemos observar como elas existem e são usadas ou nas torres de menagem ou em torreões.

Castelo de Chaves
   Existem no entanto uma imagem que me chamam bastante a atenção; Castro Marim:

Castelo de Castro Marim
   Esta foi a vista que Duarte de armas viu quando se deteve em Castro Marim (1509). O castelo ainda deveria ter a maioria das benesses mandadas efectuar por Dom Dinis em 1301, e estava em obras de recuperação por ordem de Dom João II, altura em que lhe concedeu o foral novo (1504).

   É extraordinário, (pelo menos para mim, como estudante de carpintaria de estructuras medievais) como Duarte de armas traçou no papel as traves mestras que dariam origem às coberturas dos quatro torreões do castelo, deixando-nos uma imagem inédita e muito realista de como era realizada esta obra. Graças a referências noutros textos e desenhos de época estrangeiros, podemos ter a certeza que estes desenhos são bastante correctos, embora não pormenorizados. Noutra entrada do Blogue entrarei em detalhes sobre este tema.

   Existe ainda uma cópia, ou reedição do Livro das Fortalezas, feita pelo Escriba Brás Pereira em 1642 onde copia algumas das fortalezas mas em modo de aquarela.

Fronteira de Portugal fortificada; Brás Pereira, 1642
   Interessante nesta edição é um mapa no início, denominado "Limites de Portugal", onde podemos ver uma miniatura da cidade de Braga.

Limites de Portugal in Fronteira de Portugal fortificada; Brás Pereira, 1642
Ampliação da miniatura de Braga; Brás Pereira, 1642
   Nesta miniatura, que apresento pela primeira vez e que ainda não vi referida em qualquer trabalho publicado, podemos observar em primeiro plano o que parece ser o castelo de Braga, ou pelo menos a sua torre de menagem. Pode-se observar também a cidade amuralhada com o que parecem ser torres e dentro da cidade vários edifícios, sendo o mais importante, a Sé, encimada por uma cruz patriarcal. É uma cruz eclesiástica que aparece frequentemente associada aos patriarcas em que o braço superior representa a inscrição colocada por Pilatos. Este tipo de cruz foi adoptado por cardeais e arcebispos como uma distinção hierárquica.

   Embora esta imagem não aporte informações sobre a forma da cobertura da torre de menagem, não quis deixar de partilhar por ser practicamente desconhecida.

   E que outras provas poderemos ter de que a cobertura original da torre de menagem de Braga era diferente? Afinal, todas as coberturas das torres são muito parecidas hoje em dia?

   Não sendo uma prova directa, gostaria de deixar uma sugestão de leitura. Quem está ao corrente das campanhas de intervenção da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) iniciadas em 1929 pelo estado novo até sensivelmente 1960, com vista a recuperar os velhos monumentos nacionais e que, se serviu para recuperar algum do património que estava em vias de desaparecer, também serviu para criar muitos dos mitos que ainda hoje perduram.

   Uma das frases mais conhecidas da época, que viria a dar título a um trabalho de análise sobre este tema, é bastante elucidante:

"Compor ameias em castelos como dentes em dentaduras"

   Embora tivesse havido lugar a algum estudo prévio sobre o património arquitectónico a restaurar, os estudos não estavam numa fase muito avançada a nível científico, a arqueologia estava numa fase  pioneira e, sejamos honestos, interessava criar uma imagem estilizada, focalizada na transmissão da heroicidade dos antepassados, pouco importando o verdadeiro rigor histórico.

   Era um castelo? Então tinha de ter ameias. Era uma casa forte? Não importa, ameias na mesma. Era um castelo senhorial do século XVIII sem qualquer função de defesa e importância histórica medieval? Ponham ameias nisso! A expressão pegou e passou a ser corrente, como forma de escárnio aos ditos doutores de história e arqueologia de então.

   Foi nesta altura que as coberturas também foram uniformizadas, infelizmente. As coberturas, os pisos, os acessos... Desta vez Braga não teve culpa. Foi atrás das ordens. Será que podia ter feito as coisas diferentes? Duvido, não com aquele regime.

   Também devemos ter em atenção que a torre de menagem do castelo de Braga foi parcialmente destruída pelo menos duas vezes, mas a história já vai longa.

    Entretanto uma nova vista ou "mapa" me chegou às mãos graças à generosidade do Sr. Professor Henrique Barreto Nunes. Conhecido apenas pelo "Mapa do Séc. XVII" a imagem circula em baixa definição pela Internet há bastantes anos, mas só agora, graças ao Sr. Professor tive acesso ao trabalho publicado na íntegra.

    "Uma imagem inédita de Braga no Séc. XVII"; Textos de Miguel Melo Bandeira e Eduardo Pires de Oliveira com introdução de Henrique Barreto Nunes. Publicado como Separata da Revista Fórum, pela Biblioteca Pública de Braga em 1994.


   Não vou escrever hoje sobre esta imagem, pois ainda a estou a estudar e tenho bastantes dúvidas. Quando me sentir preparado, prometo que ficará aqui para todos. Até lá gostaria de propor um novo dito "popular", parecido com o que acima mencionei para isto de reabilitação de castelos e outros monumentos;

"Compor telhados em torres e castelos como perucas em calvos e carecas..."


 

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